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26/06/2019 10:43

Fórmula 1, Rio e a eletrônica embarcada

Escrito por Wagner Gonzalez
Jornalista especializado em automobilismo de competição


A Fórmula 1 chegou onde chegou graças ao tino comercial de um inglês que iniciou sua fortuna consertando e vendendo bicicletas abandonadas ao sul de Londres. Hoje é comandada por um norte-americano diplomado em Harvard, uma das universidades mais seletivas e renomadas do mundo. A grandeza do Atlântico certamente é menor do que os estilos que caracterizam o britânico Ecclestone do norte-americano Carey; o oceano, porém, tem marés que remetem tanto à calmaria da corrida de domingo passado quando ao tsunami em que se transforma o futuro do GP do Brasil.

Especular do futuro da categoria mais importante do automobilismo é algo que se pode fazer em níveis nacional e internacional. Entre nós a existência do GP do Brasil atualmente é assunto de importância maior que a ausência de pilotos nacionais no grid da categoria. Mais do que isso, passa pelos interesses de Ecclestone e de Carey, enquanto este descendente de irlandeses representa os interesses da Liberty Media, empresa que adquiriu os direitos comerciais da F1 pela bagatela de US$ 8 bilhões. Isso porque a corrida brasileira tem uma estrutura fiel a Bernie e que cresceu junto com sua atuação no automobilismo mundial; aos 88 anos este workaholic ainda não abandonou a ideia de voltar a controlar o negócio que logrou transformar de um evento secundário a um dos empreendimentos mais ricos do entretenimento mundial.

Trata-se de uma disputa de cachorro grande, para desenhar o cenário com tintas do dia-a-dia brasileiro. Ecclestone não admite a ideia de parar de trabalhar e tudo indica que ainda não engoliu a forma como os novos donos cuidam da F1 que ele criou. Um dos primeiros atos de Carey ao suceder Bernie foi colocá-lo em uma posição que o próprio inglês definiu como semelhante ao cargo de rainha da Inglaterra. O norte-americano é homem de confiança de Rupert Murdoch, australiano considerado o maior empresário mundial das comunicações; o próprio Murdoch já mencionou que ele poderá ser seu sucessor à frente do império News Corporation; mais, o australiano não espera que o Mundial de Pilotos gere lucros apenas modestos.

Para consolidar seu objetivo, Carey precisa criar novos fãs e dar uma cara nova à categoria; não lhe faltam tentativas e novas ideias. Começou liberando o uso da internet, ideia que causava ojeriza a Ecclestone, promove exibições que levam pilotos e carros às ruas de grandes cidades, tenta abrir novos mercados, onde o Rio de Janeiro se encaixa devido ao impacto que o local pode agregar à F1 da era Liberty e fomenta conversações com possíveis endereços para Grandes Prêmios tradicionais ou inéditos. Miami e Londres são regularmente mencionadas como local para uma etapa em circuito de rua e a inserção do Vietnã no calendário do ano que vem é o primeiro fruto desse trabalho. A tradição automobilística desse país é próxima do zero e a corrida vai acontecer em um traçado nas ruas de Ho Chi Minh em uma área que passa por profundas alterações urbanísticas para receber a competição.

Levar o GP do Brasil para o Rio significaria uma vitória política para Chase Carey, cuja equipe sofre para definir as bases de renovação dos contratos comerciais com as 10 equipes que disputam a F1. Ocorre que apenas a vitória política não paga a conta de tal empreendimento. Se o Rio tem o apoio de Jair Bolsonaro (PSL) – que ontem garantiu 99% de certeza de que o GP brasileiro de 2021 vai acontecer no Rio – e do governador Wilson Witzel (PSC), ainda não se sabe de onde virão os cerca de R$ 700 milhões para construir o Rio Motor Park, única concorrente na licitação feita para escolher quem construirá a nova pista em terreno até então usado como campo de treinamento do Exército. De acordo com um arquiteto que acompanhou as assembleias públicas realizadas em Deodoro para debater a construção da pista, “o assunto Fórmula 1 nunca foi citado nessas ocasiões”.

A construção de um novo autódromo no Rio é uma demanda legítima dos automobilistas cariocas e brasileiros, e é bem-vindo especialmente se acontecer sem uso de recursos públicos, processo que deveria contar com mais atenção da Confederação Brasileira de Automobilismo. Porém há de se considerar o atual balanço financeiro do Estado do Rio e da capital fluminense, que deverão arcar com obras de acesso e infraestrutura para a região. Numa análise igualmente próxima da realidade atual da cidade, os aspectos segurança e transporte também devem ser levados em consideração para os eventos que preencham a capacidade anunciada de 135 mil espectadores no local.

Após a declaração de Bolsonaro e dos “99% ou mais” de certeza de realizar o GP de 2021 no Rio, é importante lembrar que Chase Carey afirmou que segue negociando com São Paulo, cujo contrato atual inclui preferência na renovação do acordo. Prefeitura e Estado trabalham para formatar o processo de concessão do Autódromo de Interlagos; o governador João Dória Júnior e o prefeito Bruno Covas não escondem que pretendem manter a corrida em São Paulo, onde apesar das limitações de um autódromo que já existe, há estrutura de acomodação, transporte e alimentação adequadas para o circo que faz o GP acontecer. Mais importante do que qualquer outra coisa é o fato que o assunto de "tirar a corrida de São Paulo” é a regularidade com que essa possibilidade renasce a cada renovação de contrato.

Briga no Brasil e calmaria na França – Enquanto brasileiros se empenham para definir onde a corrida de 2021 vai acontecer, o circo da F1 enfrenta um problema mais imediato e abrangente: o domínio de Lewis Hamilton e da equipe Mercedes não para de tornar as competições mais modorrentas. O GP da França, disputado domingo em Paul Ricard foi exemplo claro de tal situação. Pior: o australiano Daniel Ricciardo terminou em sétimo lugar, mas acabou penalizado duas vezes e ficou em décimo-primeiro lugar por ter usado a área de escape em disputas com Lando Norris e Kimi Räikkonen. Decisões como essa beiram o cinismo do politicamente correto e amedrontam pilotos em arriscar manobras dignas do esporte ao temer punições como as que prejudicaram Sebastian Vettel no GP do Canadá e Daniel Ricciardo na França. Juntas, essas penalidades afastam espectadores consolidados e não contribuem para a necessária renovação do sujeito que, ao final da cadeia produtiva do sistema, é o financiador de todo o circo.

Uma equipe dominar a F1 não é algo novo: a própria Mercedes, nos anos 1950, Lotus (1978), McLaren (final dos anos 1980/início dos anos 1990), Williams (meados dos anos 1990) e Ferrari (início dos anos 2000), viveram períodos semelhantes. Nenhum deles, porém, foi tão acachapante quanto o que a equipe alemã e o britânico Lewis Hamilton exercem atualmente. É preciso mudar tal cenário o quanto antes para que essa atividade de fundo esportivo não se transforme numa variante menor de jogos eletrônicos baseados em sua própria existência; isso inclui que a máquina automóvel siga, no final das contas, dependente do talento individual de pilotos e não da capacidade humana cada vez mais focada na eletrônica.

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